sexta-feira, 6 de setembro de 2013

"Muito cedo para decidir" - Rubem Alves


Muito cedo para decidir

Rubem Alves, in "Estórias de quem gosta de ensinar — O fim dos Vestibulares", editora Ars Poetica — São Paulo, 1995, pág. 31.

http://www.flickr.com/photos/andrebeltrame/2281994943/

Gandhi se casou menino. Foi casado menino. O contrato, foram os grandes que assinaram. Os dois nem sabiam direito o que estava acontecendo, ainda não haviam completado 10 anos de idade, estavam interessados em brincar. Ninguém era culpado: todo mundo estava sendo levado de roldão pelas engrenagens dessa máquina chamada sociedade, que tudo ignora sobre a felicidade e vai moendo as pessoas nos seus dentes. Os dois passaram o resto da vida se arrastando, pesos enormes, cada um fazendo a infelicidade do outro.
Vocês dirão que felizmente esse costume nunca existiu entre nós: obrigar crianças que nada sabem a entrar por caminhos nos quais terão de andar pelo resto da vida é coisa muito cruel e... burra! Além disso já existe entre nós remédio para casamento que não dá certo.

Antigamente, quando se queria dizer que uma decisão não era grave e podia ser desfeita, dizia-se: "isso não é casamento!". Naquele tempo, sim, casamento era decisão irremediável, para sempre, até que a morte os separasse, eterna comunhão de bens e comunhão de males. Mas agora os casamentos fazem-se e desfazem-se até mesmo contra a vontade do Papa, e os dois ficam livres para começar tudo de novo...

Pois dentro de poucos dias vai acontecer com nossos adolescentes coisa igual ou pior do que aconteceu com o Gandhi e a mulher dele, e ninguém se horroriza, ninguém grita, os pais até ajudam, concordam, empurram, fazem pressão, o filho não quer tomar a decisão, refuga, está com medo. "Tomar uma decisão para o resto da minha vida, meu pai! Não posso agora!" e o pai e a mãe perdem o sono, pensando que há algo errado com o menino ou a menina, e invocam o auxílio de psicólogos para ajudar...

Está chegando para muitos o momento terrível do vestibular, quando vão ser obrigados por uma máquina, do mesmo jeito como o foram Gandhi e Casturbai (era esse o nome da menina), a escrever num espaço em branco o nome da profissão que vão ter.

Do mesmo jeito não: a situação é muito mais grave. Porque casar e descasar são coisas que se resolvem rápido. Às vezes, antes de se descasar de uma ou de um, a pessoa já está com uma outra ou um outro. Mas, com a profissão não tem jeito de fazer assim. Pra casar, basta amar.

Mas na profissão, além de amar tem de saber. E o saber leva tempo pra crescer.

A dor que os adolescentes enfrentam agora é que, na verdade, eles não têm condições de saber o que é que eles amam. Mas a máquina os obriga a tomar uma decisão para o resto da vida, mesmo sem saber.

Saber que a gente gosta disso e gosta daquilo é fácil. O difícil é saber qual, dentre todas, é aquela de que a gente gosta supremamente. Pois, por causa dela, todas as outras terão de ser abandonadas. A isso que se dá o nome de "vocação"; que vem do latim, vocare, que quer dizer "chamar". É um chamado, que vem de dentro da gente, o sentimento de que existe alguma coisa bela, bonita e verdadeira à qual a gente deseja entregar a vida.

Entregar-se a uma profissão é igual a entrar para uma ordem religiosa. Os religiosos, por amor a Deus, fazem votos de castidade, pobreza e obediência. Pois, no momento em que você escrever a palavra fatídica no espaço em branco, você estará fazendo também os seus votos de dedicação total à sua ordem. Cada profissão é uma ordem religiosa, com seus papas, bispos, catecismos, pecados e inquisições.

Se você disser que a decisão não é tão séria assim , que o que está em jogo é só o aprendizado de um ofício para se ganhar a vida e, possivelmente, ficar rico, eu posso até dizer: "Tudo bem! Só que fico com dó de você! Pois não existe coisa mais chata que trabalhar só para ganhar dinheiro."

É o mesmo que dizer que, no casamento, amar não importa. Que o que importa é se o marido — ou a mulher — é rico. Imagine-se agora, nessa situação: você é casado ou casada, não gosta do marido ou da mulher, mas é obrigado a, diariamente, fazer carinho, agradar e fazer amor. Pode existir coisa mais terrível que isso? Pois é a isso que está obrigada uma pessoa, casada com uma profissão sem gostar dela. A situação é mais terrível que no casamento, pois no casamento sempre existe o recurso de umas infidelidades marginais. Mas o profissional, pobrezinho, gozará do seu direito de infidelidade com que outra profissão?

Não fique muito feliz se o seu filho já tem idéias claras sobre o assunto. Isso não é sinal de superioridade. Significa, apenas, que na mesa dele há um prato só. Se ele só tem nabos cozidos para comer, é claro que a decisão já está feita: comerá nabos cozidos e engordará com eles. A dor e a indecisão vêm quando há muitos pratos sobre a mesa e só se pode escolher um.

Um conselho aos pais e aos adolescentes: não levem muito a sério esse ato de colocar a profissão naquele lugar terrível. Aceitem que é muito cedo para uma decisão tão grave. Considerem que é possível que vocês, daqui a um ou dois anos, mudem de idéia. Eu mudei de idéia várias vezes, o que me fez muito bem. Se for necessário, comecem de novo. Não há pressa. Que diferença faz receber o diploma um ano antes ou um ano depois?

Em tudo isso o que causa a maior ansiedade não é nada sério: é aquela sensação boba que domina pais e filhos de que a vida é uma corrida e que é preciso sair correndo na frente para ganhar. Dá uma aflição danada ver os outros começando a corrida, enquanto a gente fica para trás.

Mas a vida não é uma corrida em linha reta. Quando se começa a correr na direção errada, quanto mais rápido for o corredor, mais longe ele ficará do ponto de chegada. Lembrem-se daquele maravilhoso aforismo de T. S. Eliot: "Num país de fugitivos os que andam na direção contrária parecem estar fugindo."

Assim, Raquel, não se aflija. A vida é uma ciranda com muitos começos.
Coloque lá a profissão que você julgar a mais de acordo com o seu coração, sabendo que nada é definitivo. Nem o casamento. Nem a profissão. E nem a própria vida...


15 comentários:

  1. Que texto maravilhoso, professora Pilar. Eu consegui me identificar em muitas partes dele.

    A indecisão sempre esteve presente em minha vida. Eu tenho que tomar uma decisão, mas não sei se é o que eu realmente quero, pois não sei muito bem o que eu quero.

    Não queria me sentir tão pressionado por isso, nem por mim mesmo. Eu sei que minhas decisões, por agora, só atendem ao que eu desejo desde sempre, mas é incerto. Pode ser que eu mude de ideia, como já mudei várias vezes.

    Procurar ajuda somente faz com que fique mais pressionado, pelo menos para mim, mas comentários daqueles "você ainda é tão jovem, se não gostar pode mudar a qualquer hora" me deixam um pouco mais animado para escolher o que eu quero para mim.

    O apoio dos pais é essencial e, infelizmente, muitos não o tem, assim como eu. Tenho que contar com meus amigos para me orientar numa coisa que "adormece" dentro de mim mesmo, a minha vocação que ainda não foi descoberta. E é frustrante não saber o que realmente quer e que no momento não pode fazer tudo o que quer, assim como encarar a profissão que "tem" que escolher como um monstro a se enfrentar.

    Sinto-me como uma criança, que descobre uma coisa nova a cada momento. Minha vida ainda está apenas começando, há muita coisa para se conhecer, estudar e viver. E isso é o que me deixa animado, ainda, sabendo que nada é definitivo, e que posso recomeçar a qualquer momento.

    :]

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    1. Oi Rafa,
      nada é definitivo mesmo...
      Eu mesma ainda não sei bem o que quero, são tantas coisas de que gosto e parece injusto ter que escolher só uma. Na verdade, é injusto escolher só uma, só ter tempo para me aprofundar de verdade em uma coisa só.

      Mas, imagina quanto tempo temos pra errar e acertar e mudar o curso e se cansar e querer outra coisa?

      Eu ainda quero terminar meu doutorado, fazer graduação em música, fazer pós-doutorado, ter mais uns dois filhos, e por aí vai... :0D

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    2. Só fico mais depressivo quando percebo que a vida é limitada. É muita coisa boa para pouco tempo :(

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    3. Ou a gente se deprime ou fica feliz pelo tempo que tem.
      Sabe a palavra desânimo?
      Ela significa falta de Alma. (des- falta, e ânimo = alma em latim).
      Imagina ficar sem alma, sem o que nos move...

      A vida é linda demais pra isso. :0D

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    4. Comentários como esse que me motivam :p

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  2. Eu essa ideia de recomeçar também me assusta, na mesma medida de não poder voltar atrás. Recomeçar pode ser visto como uma grande perca de tempo. Recomeçar não é tão reconfortante para mim, e se eu tiver que recomeçar infinitas vezes e nunca encontrar aquilo que me agrada, se eu não me satisfazer, se eu sempre escolher errado. Não me preocupo se tem pessoas que me pressionam, a pressão que faço sobre mim mesma já é o suficiente. E se nas pior das hipóteses o que me satisfazer profissionalmente não me fornecer remuneração suficiente pra eu realizar os meu outros sonhos. Eu cresci e não sei e que quero fazer, isso é assustador.

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    1. Sempre será assustador Kamila... sempre...

      A cada novo desafio que enfrento, tenho crises existenciais profundas... hehehe

      Mas, é sério: quando o Heitor nasceu eu achei que não ia conseguir amamentar, depois, aos 6 meses, achei que não ia conseguir dar comida a ele, depois, achei que não ia conseguir ajudá-lo a andar, e assim foi.
      Na profissão, não imaginava ir para o Ensino Básico. Tinha traçado uma ideia de carreira acadêmica, mas a estabilidade me fez assumir um concurso, e tive que enfrentar 7 turmas, com 45 alunos/as cada, tendo que acordar de madrugada, e falar de coisas para as quais meus cursos não me prepararam integralmente. No entanto, tem sido a melhor escola que eu poderia ter, o melhor lugar para o meu desenvolvimento como pessoa e como profissional.

      A vida nos surpreende muito e deixar que ela nos surpreenda, às vezes é a melhor coisa que podemos fazer...
      Soltar um pouco as rédeas e curtir a viagem...

      :0D

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  3. Professora o seu texto está magnífico. Já mudei de opinião sobre o que quero fazer muitas vezes, isso realmente fica sempre uma grande duvida na hora da escolha pois a minha foi muito difícil, mas confesso que ainda estou com um pouco de medo da minha escolha tem medo me decepcionar futuramente. Espero que esta vez o curso que eu escolhi tenha sido o certo, pois eu gosto muito da profissão de fisioterapeuta. :)

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    1. Querido Vitor,
      a gente só sabe de verdade quando passa pela experiência concreta.
      Afinal, como saber como é amar algo se não se passou pela experiência desse algo, né?

      Então, fique tranquilo e faça o seu melhor. Se não for isso, a vida, mesmo sendo curta, é muito grande, e nos dá tempo para que realizemos nossos sonhos (ou pelo menos, grande parte deles).

      :0)

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  4. Oh meu Deus, amei de verdade! Sempre achei que era uma pessoa super-indecisa em relação à minha futura profissão. Muita gente que conheço fica me perguntando sobre, e eu não sei o que responder... Apenas parece que sou uma garota que não sabe o que quer da vida, que não liga, ou que não quer saber de nada. ACHO ATÉ QUE DÁ A IMPRESSÃO QUE QUERO VIVER APENAS ÀS CUSTAS DOS MEUS PAIS! Na verdade não é bem assim, eu sempre respondo as pessoas dizendo que não sei ainda, que tenho muitas opções e que não sei o que amo de verdade, o que quero fazer com amor o resto da minha vida. Sempre escuto: "Você tem que fazer alguma coisa que dê dinheiro" ou "Não, ser professora não dá dinheiro, não". Me lembro muito bem que da última vez que eu fui questionada sobre o que quero ser futuramente, respondi minhas diversas opções e ouvi o de sempre: que tinha de pensar se dava dinheiro ou não. Daí eu rebati que não adianta eu fazer uma coisa que eu não gosto só pelo dinheiro, que isso não fazia sentido para mim. Devo ser vista como uma pessoa despreocupada, mas muito pelo contrário, isso fica martelando na minha cabeça 24 horas por dia!
    Me identifiquei bastante com o texto, adorei a história de Gandhi para que entendêssemos com mais facilidade o texto direcionado à nós. Voltando a profissão, tenho visto muito a escolha da profissão somente como status. Acho isso o cúmulo do absurdo, não há motivo nenhum que me faça acreditar que isso seja normal. A sociedade atual quer apenas viver de aparência, fazer coisas que não gostam só para agradar pessoas que não conhecem e sustentar o ego indivual... Deixam de serem elas mesmas, acho que acabam perdendo se aos poucos aos poucos na infelicidade. A escolha da profissão, para mim, está baseada no que sempre gostamos de fazer durante a vida toda. Por exemplo: Eu não tenho paciência nenhuma com as exatas, na verdade me perco nos cálculos e na maioria das vezes nem sei no que me leva a ser obrigada a "estudar" essas chatices... Mas tenho facilidade em idiomas, tenho mais ou menos uma percepção mais avançada nessa áreas. Gosto muito, acho superrrrrrr legal :D Não faz sentido nenhum eu fazer facul de Engenharia Mecatrônica se eu sou apaixonada pela Língua Francesa, isso só para tentar ser quem eu não sou, me tornar infeliz somente por ser uma área bem mais reconhecida do que a minha verdadeira paixão *-* Nossa, eu dei uma viajada legal nesse texto aqui. Peço desculpa, Pilar. Minhas ideias não tem nexo algum, meus neorônios funcionam na ordem errada. Desculpa pelo texto-bagunça, mas enfim, queria apenas falar um pouco sobre a minha opinião. Fiquei muito feliz por saber que tenho muitos pratos na mesa, e que isso é bem mais legal do que ter apenas um e nem sempre terei de escolher aquele único. Mudo muito de ideia, muito mesmo. Gostei de saber que isso é normal. Ah chega de falar besteira. Espero que entenda o que quis dizer aqui. Um beijo!

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    1. Aproveitando seu comentário para expressar o que eu acho também. No momento, eu quero fazer um curso que dialoga com a minha paixão pelo universo desde pequeno, física. Eu apenas quero fazer, descobrir se realmente gosto disso! Não me importa o dinheiro que virá, só quero saber se me sentirei satisfeito e realizado com essa escolha.

      Sei que meus pais queriam um médico, administrador, advogado ou outra profissão de status, mas desde pequeno eu queria fazer parte da área de docência. Mas os comentários que vem a mim sobre ser professor me deixam um pouco para baixo, mas eu insisto nisso. Talvez eu mude de ideia no meio do caminho, mas, no momento, eu creio que seja a escolha que está mais de acordo com meus desejos.

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    2. Rafa, você é quem vai construir o seu caminho e, principalmente, quem vai caminhar por ele. Então, siga sua intuição! :0D

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  5. Oi Vic,
    lindo o seu depoimento!

    Suas ideias são super conexas, e você se expressa perfeitamente.
    Afinal, é um assunto complexo, não é mesmo?

    Sabe essa coisa de "ser professor não dá dinheiro"?
    Eu ouço isso sempre e, muitas vezes, me canso com a falta de recursos para o exercício pleno de minha vocação...

    Eu brinco com meus/minhas alunos/as dizendo: "Eu podia tá robano, podia tá matano, podia tá carimbano papel em um tribunal e ganhando 20mil por mês, mas não, tô aqui, dano aula!" hehehhe

    Bom, eu poderia, né? E só poderia escolher porque estudei muito para isso. Estou na careira da docência por escolha e não porque foi o que restou.

    E enfim, eu pude escolher o que eu quis/quero fazer e isso, por si só me faz feliz. Estar em sala de aula, por mais cansativo que seja, é maravilhoso. Estar em contato com pessoas tão lindas quanto meus/minhas alunos/as me alimenta de vida e me faz perceber como o que eu faço é importante e válido. E isso, minha querida, dinheiro nenhum do mundo compra. :0D

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  6. Pilar, acho que você me deu um pouco mais de esperança quanto a escolha do meu curso, enquanto familiares ou amigos da família me empurram para um curso mais 'leve', como mais mercado de trabalho, o curso que eles ACHAM a minha cara, ou melhor para mim, a senhora disse 'vá em frente'.

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    1. Oi Aline,
      que bom que você gostou do vídeo! Sucesso, menina!

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